CUIDADO, AS PALAVRAS SÃO PODEROSAS

Divórcio nos Alpes

01/03/2011 19:51

 Divórcio nos Alpes

Na natureza de algumas pessoas não há meio tons; nada há senão a crueza das cores primárias. John Bodman era um homem que estava sempre num extremo ou noutro. Essa característica não teria sido um problema se a personalidade de sua esposa não fosse exatamente uma réplica da sua.

Sem dúvida existe, neste mundo, a mulher certa para cada homem - e vice-versa. Porém, se considerarmos que um ser humano tem a oportunidade de conhecer apenas umas poucas centenas de pessoas, e que dentre essas poucas centenas terá chance de estabelecer um contato mais íntimo com no máximo uma dúzia, e que desse pequeno número se tornará amigo de apenas uma ou duas, é fácil de ver - ao imaginarmos quantos milhões de seres humanos habitam este mundo - que provavelmente, desde que a Terra foi criada, o homem certo e a mulher certa jamais se encontraram. As chances matemáticas estão todas contra tal encontro, e é por esse motivo que os divórcios existem. Na melhor das hipóteses, o casamento não é senão um acordo, e se duas pessoas que se unem possuem naturezas discordantes, certamente haverá problemas.

Na vida dessas duas jovens criaturas não havia meio termo. O resultado só poderia ser amor ou ódio, e no caso de John Bodman e sua mulher era ódio do tipo mais amargo e visceral.

Em algumas partes do mundo, a incompatibilidade de gênios é considerada uma causa justa para a obtenção de divórcio; porém, na Inglaterra, essa sutil disposição de espírito não é levada em conta, e até que a esposa cometa um crime ou o marido se transforme num ser cruel e criminoso, os dois estarão unidos por um vínculo que só a morte poderá desfazer.

Nada pode ser pior do que esse estado de coisas, e o problema se tornava ainda mais insolúvel porque a sra. Bodman vivia uma vida sem máculas, e seu marido não era pior - e talvez fosse até melhor - do que a maioria dos homens. Entretanto, essa afirmação era só parcialmente verdadeira, porque John Bodman tinha atingido um estado mental no qual havia resolvido se livrar da mulher de qualquer jeito. Se ele fosse pobre, talvez simplesmente a abandonasse; porém, era rico, e um homem não deve colocar em risco sua bem sucedida vida profissional só porque sua vida doméstica não é feliz.

Quando a mente de um homem se fixa num único pensamento, ninguém consegue prever o desenrolar dos fatos. A mente é um instrumento delicado, e até mesmo a lei reconhece que seu equilíbrio é razoavelmente precário. Os amigos de Bodman - pois ele tinha amigos - presumiram que sua mente estava perturbada; no entanto, nem os amigos, nem os inimigos, levantaram suspeita quanto ao episódio, que acabou se tornando o mais importante - e certamente o mais nefasto - evento de sua vida.

Se John Bodman estava mentalmente são ou insano no momento em que decidiu assassinar a esposa, nunca se saberá, mas com certeza havia engenhosidade no método que elaborara para fazer com que o crime parecesse um acidente. Todavia, perspicácia é uma qualidade que não raro aparece em mentes desequilibradas.

A sra. Bodman sabia muito bem o quanto a sua presença incomodava o marido, mas sua natureza era tão determinada quanto a dele, e o ódio que nutria pelo companheiro era, possivelmente, ainda mais feroz do que o que ele sentia por ela. Onde quer que ele fosse, ela o acompanhava; e talvez a idéia do assassinato nunca lhe tivesse ocorrido se a esposa não tivesse tão persistentemente imposto sua presença, o tempo todo e em todas as ocasiões. Assim, quando ele anunciou que planejava passar o mês de julho na Suíça, ela não disse nada, apenas preparou-se para a viagem. Nessa ocasião, John não protestou, como fazia costumeiramente; então, em silêncio, o casal partiu para a Suíça.

Há um hotel próximo dos cumes das montanhas, construído na base de uma das grandes geleiras. Numa altitude de quase três mil metros acima do nível do mar, sobressai solitário, e é alcançado por uma íngreme estrada que ziguezagueia pelos flancos da montanha por seis milhas. As varandas do hotel propiciam uma vista maravilhosa dos picos nevados e das profundas geleiras, e nas vizinhanças da hospedaria inúmeras trilhas levam o caminhante a pontos turísticos com graus de variada periculosidade.

John Bodman estava bem familiarizado com o hotel e com seus arredores, pois a região havia sido seu destino turístico preferido em épocas mais felizes. Agora, em que a obsessão pelo assassinato dominava sua mente, a lembrança de um determinado local, distante duas milhas da hospedaria, perseguia-o continuamente. Era o mais alto mirante da região, e sua extremidade era protegida apenas por uma parede baixa e frágil. Numa determinada manhã, levantou-se às quatro horas, saiu sorrateiramente do hotel e caminhou até o local, que era conhecido na região como o Mirante Suspenso. Sua memória não o desapontou. Esse é o lugar perfeito, pensou.

A montanha na qual o mirante havia sido construído era selvagem e íngreme. Não havia habitações nas proximidades. O distante hotel ficava escondido por uma curva abrupta do caminho. As montanhas do outro lado do vale ficavam longe demais para permitir que um nativo ou turistas casuais pudessem ver o que acontecia no Mirante Suspenso. Apenas um vilarejo, cujas habitações pareciam pequenas casinhas de brinquedo, podia ser avistado no fundo do vale.

A visão dos muros meio destruídos à beira do precipício já era motivo suficiente para abalar os nervos até mesmo do mais destemido visitante. A escarpa abrupta tinha mais de dois mil metros de profundidade, e o solo no fundo do precipício era coberto de rochas e árvores retorcidas, que o nevoeiro azulado fazia parecer um pequeno bosque.

Este é o lugar, disse o homem para si mesmo, e amanhã de manhã é o momento perfeito.

John Bodman havia planejado seu crime com a mesma frieza, crueldade e determinação com que fazia seus negócios na Bolsa de Valores. Não havia lugar em sua mente para qualquer sentimento de piedade para com sua vítima. Seu ódio o havia levado ao extremo.

No dia seguinte, após o café da manhã, ele disse à esposa:

Vou fazer uma caminhada pelas montanhas. Quer vir comigo?

Sim, ela respondeu, lacônica. 

Tudo bem então, ele disse. Estarei pronto às nove horas.

Estarei pronta às nove horas, ela repetiu.

Na hora determinada, eles deixaram juntos o hotel, para o qual ele pretendia retornar sozinho pouco tempo depois. Não trocaram uma única palavra durante o percurso até o Mirante Suspenso. O caminho, que contornava as montanhas, era quase plano, já que o mirante se localizava numa altitude apenas um pouco superior à do hotel.

John Bodman ainda não havia planejado todos os detalhes do procedimento ao chegar ao local escolhido. Decidiu deixar-se levar pelas circunstâncias. De vez em quando, era assaltado pelo temor de que ela pudesse agarrar-se a ele e arrastá-lo consigo na queda. Noutros momentos, surpreendia-se imaginando se a esposa teria algum pressentimento sobre seu destino, e uma das razões para manter-se calado era o medo de que um tremor em sua voz pudesse despertar suspeita.

Ele decidiu que sua ação deveria ser rápida e inesperada, para que ela não tivesse chance de evitar o empurrão nem de arrastá-lo para o precipício. Não temia que os gritos da mulher pudessem ser ouvidos por alguém numa região tão desolada. Ninguém poderia chegar ao mirante sem passar pelo hotel, e nessa manhã nenhum hóspede havia saído da hospedaria, nem mesmo para uma expedição à geleira - um dos mais fáceis e populares passeios da região.

Inesperadamente, ao avistarem o Mirante Suspenso, a sra. Bodman parou e estremeceu. Bodman olhou para ela disfarçadamente, e perguntou-se de novo se ela suspeitaria de algo. É impossível dizer, quando duas pessoas caminham juntas por um longo tempo, que tipo de comunicação inconsciente pode se estabelecer entre suas mentes.

Qual é o problema? ele perguntou, de forma grosseira. Está cansada?

John, ela replicou, a respiração entrecortada, chamando-o pelo nome de batismo pela primeira vez em muitos anos. Você não acha que, se tivesse sido mais gentil comigo no princípio, as coisas poderiam ter sido diferentes?

Eu acho, ele respondeu, sem olhar para ela, que agora é muito tarde para discutir essa questão.

Eu me arrependo de muita coisa, disse ela, com voz trêmula. Você não?

Não.

Muito bem, replicou a esposa, com a dureza habitual retornando à sua voz. Eu estava apenas lhe dando uma oportunidade. Lembre-se disso.

O marido olhou-a, desconfiado, e inquiriu:

O que quer dizer com isso, me dando uma oportunidade? Eu não quero oportunidade, nem coisa nenhuma de você. Um homem não aceita nada de quem odeia. Meus sentimentos em relação a você, eu imagino, não são segredo. Estamos presos um ao outro, e você tem se esmerado em fazer com que essa ligação seja insuportável.

Sim, ela respondeu, olhando para o chão, estamos presos um ao outro - presos um ao outro!

Ela repetiu essas palavras em voz baixa no restante do percurso até o Mirante Suspenso. Bodman sentouse na mureta parcialmente destruída. A mulher deixou cair ao solo o bastão de alpinista, e começou a caminhar nervosamente de um lado para outro, abrindo e fechando as mãos. O marido aspirou profundamente o ar, ansiando pela chegada do momento decisivo.

Por que você está andando de um lado para outro como um animal enjaulado? ele gritou. Venha cá, sentese ao meu lado e se acalme.

Ela encarou-o com uma luz no olhar que ele jamais havia visto - a luz da insanidade e do ódio.

Eu ando como um animal enjaulado, disse ela, porque sou um. Você falou agora pouco do seu ódio por mim; porém, você é homem, e o seu ódio não é nada perto do meu. Por pior que você seja, por mais que queira quebrar o elo que nos une, há coisas que sei que você não faria. Sei que não há idéia de assassinato em seu coração, mas há no meu. Vou mostrar a você, John Bodman, o quanto o odeio.

O homem agarrou-se nervosamente à pedra ao seu lado, e sobressaltou-se ao ouvi-la mencionar a palavra assassinato.

Sim, ela continuou, contei a todos os meus amigos na Inglaterra que tinha certeza que você pretendia me matar na Suíça.

Meu Deus, ele gritou. Como você pôde dizer isso?

Eu disse para mostrar o quanto odeio você - e o quanto estou preparada para a vingança. Alertei as pessoas no hotel e, quando saímos, dois homens nos seguiram. O proprietário ainda tentou me persuadir a não acompanhar você. Em poucos minutos, esses dois homens chegarão aqui, no Mirante Suspenso. Conte a eles, se acha que acreditarão em você, que foi um acidente.

A mulher, enlouquecida, rasgou pedaços da própria roupa e espalhou os trapos pelo chão. Bodman ergueuse, gritando, Pare! O que você vai fazer? Porém, antes que pudesse se mover, ela se atirou por cima da mureta; seu corpo rodopiou no vazio até atingir o fundo do abismo.

Nesse exato momento, dois homens surgiram apressadamente no caminho do Mirante, e surpreenderam o marido parado ao lado do precipício. Ainda perplexo, John foi tomado pela aterradora certeza de que ninguém acreditaria quando contasse a verdade.

BARR, ROBERT. "An Alpine Divorce", in Revenge!. London, 1896. Tradução e adaptação de Maria Cristina Bessa Lima.

 

 

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